Raízes da gastronomia no vale do café
UMA AULA DE APROVEITAMENTO, AUTO SUFICIÊNCIA E SUSTENTABILIDADE.
Os ingredientes mais desenvolvidos hoje, nas casas que oferecem profissionalmente gastronomia do Vale do Café, são café, cachaça e tilápia. Mas muitas são as raízes de diversidade que você encontra nos fogões e na vida plena de prazeres do campo. Vamos desvendar em poucos traços, a essência única do que você vai encontrar.
A luz elétrica chega nas áreas rurais do Vale do Café somente na década de 80. Enquanto John Travolta lotava os cinemas com Saturday Night Fever e Bee Gees; Elis Regina, Gal, Caetano e Gil nos faziam cantar no rádio e televisão; aviões intercontinentais, geladeiras e computadores se beneficiavam da eletricidade; aqui, a vida isolada não prescindia de técnicas ancestrais de sobrevivência e entretenimento. Ainda hoje no Vale do Café, há cantões isolados sem eletricidade. O asfalto nas estradas principais chega quase nos anos 2000. Estas ainda são, em sua maior parte de terra, garantindo delicioso isolamento. Supermercados são conceitos de suprimento considerados novos na região (dos anos 90), em que a troca de alimentos, bebidas, sementes e mudas; a cultura da horta, da frutífera, da cachaça, do café, dos fogões de lenha acesos de manhã à noite com suas panelas de ferro, dos pequenos animais de quintais, breve, da auto suficiência fazem parte do cotidiano. Há relatos de menos de 60 anos atrás, que as únicas coisas que não se deixava de comprar na região rural do Vale do Café, eram sal e querosene. A carne, cozida ou frita, de qualquer variedade, era conservada imersa na banha de porco derretida. O urucum ainda muito utilizado, era rei. Dizem hoje muitas cozinheiras do Vale, com menos de 50 anos: “não havia molho de tomate: havia urucum”. Hoje se sabe que as propriedades medicinais de suas sementes vermelhas, ajudam a equilibrar o colesterol dos pratos engordurados e combater a anemia.
Pense nos inhames, raízes, batatas, farinhas, mingaus, castanhas de sapucaias, urucum, mel, folhas, pesca e caça aprendida com os índios (desde 1967 a caça de animais silvestres é proibida no Brasil). Junte a isto cana de açúcar, café, milho, ovos, carne dos animais de quintais e pastos, leite de cabras e vacas. Misture a contribuição das receitas indígenas, europeias e africanas, e você tem a planta ancestral de um menu de gastronomia de força, fonte de muita energia, que ainda pode encontrar no Vale.
Esta preservação cultural e gastronômica que encontramos viva nos fogões de lenha ou a gás, é um lado maravilhoso deste tardio desenvolvimento. Delicie-se com nossa lista!
Café: no Vale do Café, antes de mais nada, pense café. A primeira pergunta quando se chega em algum lugar é: você teria um café passado? Um café coado? Coado com caldo de cana, com anis estrelado, como ingrediente de outros pratos, ele é estrela. Servido só ou acompanhado de broa de milho, ou queijo puro.
Cana de Açúcar: Cachaça. A cana com suas moendas é matéria prima da sofisticada cachaça que é produzida na região. Inúmeros alambiques no Vale do Café, a maioria com prêmios internacionais, levam a tradição de mais de 450 anos no Brasil, ao cenário contemporâneo. Há também a cultura de alambiques caseiros, não comerciais, para consumo próprio, em casas com quintais.
Melado, calda grossa, que se consegue antes do endurecimento em rapadura ou refinamento para outros tipos de açúcar. Era a principal forma de adoçar da região, e ainda se encontra em muitas prateleiras. O melado contém muito ferro e cobre, e é considerado um suplemento importante. Procure por café com melado, broa de milho com melado…
Caldo de Cana, suco verde adocicado extraído por moendas, ao prensar o caule da cana. Pode ser comprado em vários locais.
Proteína Animal: Peixes, leitões, vacas, aves, cabritos, ovos, ganham diversas roupagens. Do animal, em respeito à sua vida, aproveita-se tudo. Cabeça, pele, miúdos, patas – nada é jogado fora. Da bacia do rio Paraíba do Sul um universo de peixes de água doce: tilápia (introduzida pelos portugueses) frita ou cozida, lambari fritinho, muçum (peixe-cobra preta aquática) cascudo, surubim, dourado, cará, traíra de espinho. Rã de brejo, musculosa menor, cinza quase branca, cozida ou frita. Dos quintais e pastos, um desfile de pratos do campo brasileiro: “leitão à pururuca” leitão assado com a pele crocante ; “vaca atolada” aipim com costela de boi e temperos, “cozido” diversas folhas, legumes, ovos, carnes de porco, boi, linguiças cozidas juntas e acompanhadas de pirão de mandioca; “feijoada” feijão preto ou vermelho cozido com pedaços de porco e boi acompanhados de couve, farofa e arroz; “sarapatel” angú com miúdos de porco ensopados; “bucho de boi” (bucho=estômago) frito ou na água e sal com alho, no colorau de urucum; “buchada de bode” estômago recheado de miúdos, cozido; “cabrito, pato, coelho ou d’angola assados” ou cozidos; “croquete de pato”, “rabada” rabo de boi, cozido com agrião ou folhas verdes; “mocotó” osso de boi, cozido com feijão branco, paio e calabresa; “osso de boi com tachada de angu” osso cozido acompanhado de angu em creme; “dobradinha” intestino cozido ou frito; “galinhada” arroz, pimentão, pedaços inteiros de frango e temperos; “pé de galinha” em sopas, ou cozido e refogado; “linguiças” de porco ou frango, carne embutida na tripa do porco; “torresmo” gordura de porco, cortada em cubos, e frita; “chouriço ou mucia” espécie de linguiça de sangue de porco embutida na tripa; “bife de sangue de boi” sangue talhado em bloco, cortado, cozido e frito para fazer bife; “tutu” ovo cozido, torresmo, feijão preto misturado com farinha de mandioca; “farofa de tanajura” farofa exótica do bumbum frito da formiga tanajura (o sabor se assemelha a bacon);
Café da manhã na roça: café com melado ou passado no caldo de cana, inhame rosa, aipim (mandioca), batata doce, milho cozido, angú doce e arroz doce, manteiga de garrafa, ovo quente, mexido ou cozido.
Vegetais: castanhas das sapucaias, coquinhos ralados das palmeiras locais, legumes, raízes, grãos, frutas e folhas. Caldo de aipim; papa de fubá com água e folhagens; taioba, broto de bambú refogado, couve, almeirão, mostarda, caruru do mato sem espinho, milho.
Mamão verde refogado como legume. Farinhas de pilão: mandioca, araruta. Mingau de farinhas com água e com leite. Angu.
Leite e derivados: queijo branco e coalhada.
Doces de Tacho: abóbora com côco ralado (coquinhos de indaiá e pati), mamão verde, laranja, doce de leite.
Agradecemos a três cozinheiras maravilhosas nascidas no Vale do Café que contribuíram com este relato colhido em campo: Maria Célia de Souza Costa, Mônica Fazio, Rosemeire Maia.
E a três filhos, nascidos no Vale, de mães cozinheiras maravilhosas: Luiz da Costa, Neucimar Cerqueira e Waldelino Cazuza.